sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O escritor e o texto de memorando

Sou um consumidor compulsivo de novos autores. Praticamente não resisto quando um livro de alguém desconhecido cai na minha mesa. "É novo? Ninguém conhece? Pode servir" – vou dizendo logo ao garçom. Na maioria das vezes não me arrependo. Posso dizer com segurança que ler um texto de um novo autor é quase tão nutritivo quanto ler um clássico da literatura. Lógico que essa prática requer alguns cuidados.


Sou um compulsivo feliz. Raríssimas vezes o texto é intragável. Quase sempre estão recheados de novidades e boas surpresas em estilo e criatividade. Os riscos são sempre maiores entre nas histórias de fantasia e na onda do new adult. Impulsionados pela moda e por algum inexplicável sonho de consumo, esses livros proliferam feito praga. Alguns podem até surpreender. Outros são difíceis desde o início.

Algumas histórias, porém, ficam num limbo. São boas histórias. Bons argumentos. Mas esbarram na inabilidade pura de alguns autores. Fique com pé atrás quando topar com comentários do tipo: "É um texto bem escrito." Preste atenção, isso não é um elogio. No mínimo é uma forma simpática de dizer que falta algo ali. Falta a alma.

Espera-se um texto bem escrito num memorando ou num ofício. Um texto burocrático precisa ser bem escrito. É o mínimo. Mas esse formalismo é um desastre se for levado ao pé da letra na literatura. O formalismo mata a essência do texto.

Recebi boas referências de um livro recém-baixado da Amazon. Comecei a leitura brigando com a formatação do texto, inadequada para ser utilizada num leitor como o Kindle. Mas aí eu topei com um "tendo em vista". Nada contra o uso de certas expressões. Porém, é fundamental refletir se aquele tipo de expressão se encaixa naquele texto. Eventualmente determinadas expressões servem perfeitamente. Na maioria das vezes são verdadeiras âncoras, nós, anzóis em curva de rio. Elas travam o texto. Tiram a fluidez e a naturalidade. E a literatura vira um reles memorando.

Um bom texto é completamente diferente de um "texto bem escrito". Claro, um bom texto precisa ser "bem escrito", considerando-se aí as boas regras da língua portuguesa... Porém, ele precisa de ritmo e liberdade. Dispensa burocracias e descrições inúteis em momentos inadequados. É totalmente desnecessário referir-se a Belo Horizonte, capital de Minas Gerais... Não estamos escrevendo um Atlas! Faz muito tempo que não vou à Belo Horizonte. Quando frequentava, os moradores costumavam se referir à cidade como BH. E isso já é o suficiente. Basta as referências nativas!

“Tendo em vista que gostaram do rapaz logo de cara...”; “...A família morara em Florianópolis, capital de Santa Catarina." Fala sério, precisa mesmo usar tudo isso para escrever uma boa história?

A título de complemento, quero sugerir um ótimo manual para qualquer escritor (seja novato ou veterano). Li quando era garoto e posso garantir que faz bem à saúde: Uma Poética de Romance – Matéria de Carpintaria, de Autran Dourado (Rocco). Para felicidade geral da nação, o livro não está esgotado. Vale a pena.

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