sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A perspectiva da grama – Conto

Um borrão vermelho tomou conta dos seus olhos. Uma dor aguda atravessou sua cabeça, indo da nuca até a testa. O que pode ser isso? Ele pensou. Respingos gelados batem no seu rosto, como se fossem pequenos tapas. “Alguém está querendo me acordar” – ele voltou a pensar. Ele abre os olhos. A imagem lhe aparece embaçada. A luz do sol ofusca e os pingos d’água dificultam ainda mais manter os olhos abertos. Ele cobre os olhos com as mãos e ergue a cabeça com alguma dificuldade. “Cadê o meu quarto, a minha cama?” Filetes de grama cutucam o seu ouvido. Aos poucos o borrão vai tomando forma e ele percebe que está caído num jardim. Ele ergue o corpo e apoia nos cotovelos. Ah! Agora sim. Os respingos continuam. Gelados. Ele olha em volta. Uma mulher o observa com ar surpreso. Em suas mãos, uma mangueira continua despejando água. Então era isso?


– Tudo bem com o senhor? – ela diz. Seu olhar revela estranheza.

– Sim, tudo. Tirando o fato de que não faço a menor ideia do porque estou deitado no jardim, está tudo bem.

– Eu não tinha visto o senhor aí. Desculpe se o molhei.

– Não. Quero dizer, respingou um pouco, mas está tudo bem.

– O senhor quer alguma coisa?

– Não, obrigado. Não quero nada não. Vou ficar aqui por mais alguns minutos...



Não podia ser diferente. Afinal, Quantas vezes na sua vida você começa a molhar um jardim e topa com um cara maltrapilho deitado na grama? E quais as chances daquele cara maltrapilho ser o seu chefe? Ele voltou a olhar para aquela mulher. Em seguida, deu outra olhada na casa. Sim, é a sua casa. Portanto, sua analogia está correta. Se ela está aqui, molhando as plantas do jardim de sua casa, logo ela deve trabalhar para ele. Mesmo assim ainda não tinha certeza.

– Desculpe, mas quem é você? – ele perguntou.

– Eu cuido dos jardins dessa casa já faz um ano.

– Ah. E você sabe quem sou eu?

– Claro... O senhor não sabe?

– Sim, lógico que eu sei quem sou eu. Continue com o seu trabalho. Não se incomode comigo. Eu vou ficar bem – “assim que eu juntar as pontas e entender o que diabos estou fazendo aqui”, ele tornou a pensar.



Bem, antes uma pequena verificação. Seu nome é Rodolfo. A última lembrança que lhe vem à cabeça é de um telefonema importante. Ele fechou mais um ótimo negócio e decidiu dar uma festa. Claro! As coisas começam a fazer sentido. Ele convidou alguns colegas do trabalho. Abriu uma caixa de uísque e o resultado estava ali. Ele está sem camisa, sem sapatos, usando uma calça manchada que não lembra bem se é dele.

Ele olha em volta. A casa parece estar intacta. O jardim está bem cuidado. Ele detém os olhos na casa. Como ela é maravilhosa. Normalmente Rodolfo não costuma perder o controle desse jeito. A festa deve ter sido ótima. Ou não. Ele também não costuma perder tempo com essas coisas. Festas só são úteis quando ajudam a fechar algum negócio. Assim como não vê grande importância em rituais como almoços ou jantares. Mas aquele telefonema realmente mexeu com ele. Foram meses de dedicação. Precisava ser comemorado. Havia outro motivo, mas, nessas circunstâncias, ele não consegue lembrar exatamente o que era. E a casa realmente é maravilhosa.

A enorme construção ocupa quase mil metros quadrados, no meio de um terreno bem localizado. Na frente um jardim europeu digno de cartão postal. Atrás, quadra de tênis, piscina, um estúdio que já não tem mais utilidade, um salão de festas...

As colunas brancas são imponentes, o hall de entrada é magnífico, com detalhes em mármore. São vários quartos de hóspedes, biblioteca, salas de TV, escritórios... A casa é realmente enorme. Tão grande que há semanas ele não encontra com seus filhos. Engraçado porque, quando sua mulher foi embora, ele também não percebeu. A rotina não incluía encontros familiares. Só quase um mês depois ele viu o bilhete dela, deixado sobre um livro que ele esqueceu de terminar de ler. Agora, vista do chão, a casa já não parece mais tão importante. Ele concentra sua atenção no que está à sua volta.

Deitado entre as folhagens ele percebe detalhes do jardim que não conhecia. Ele percebe flores coloridas que antes não existiam. Pássaros, abelhas e pequenos insetos fazendo malabarismos sobre as folhas. Incrível, mas existe vida aqui. Mais do que em qualquer outro lugar onde ele já esteve. Claro que em nenhum desses lugares ele se deu ao trabalho de prestar atenção aos detalhes. Não como está fazendo agora. E como as coisas mudam quando se olha de outra perspectiva. Ele percebe que, naquele instante, está experimentando um desvio. Ele está fora de rota. E não era isso que havia planejado.



Ainda entre as folhagens é possível ver uma pequena gota d’água escorrendo pelo caule de uma flor. Tal qual a sua própria vida, aquela água escorre por um curto caminho, mas, ao contrário de sua vida, aquela água tem um propósito, o de alimentar aquela planta. E aquela planta também tem seu propósito, alimentando insetos e ajudando outras plantas. E qual é o propósito da sua vida? Apenas destruir outras vidas, como se ele fosse uma erva daninha? Mas as ervas daninhas também tem seu propósito, ora. E, como qualquer outra planta, também luta por aquela pequena gota d’água. Tudo bem, essa é uma boa desculpa. Mas só isso basta? Depois de todos esses anos, era isso mesmo que ele queria? Ser uma reles erva daninha cuja existência está oficialmente justificada? Ele ainda se sente no desvio.

No topo daquele caule há uma pequena flor amarelada. Ele olha bem para ela. Até ontem qualquer desculpa bastaria para justificar a sua vida. Hoje ele já não sabe de mais nada. Aquela flor é tão bonita em sua simplicidade que merece cada gota d’água que possa absorver. Mais do que todo o resto à sua volta. Mais do que qualquer erva daninha que possa existir. Inclusive ele.

Pensando bem, não é esse desvio atual o seu verdadeiro desvio. A sua vida interia está fora de rota. Não era seu objetivo original ganhar dinheiro. Ainda mais tanto dinheiro. Mas essa possibilidade surgiu de forma tão avassaladora que foi impossível não ceder a ela. Não era só pelo dinheiro, o que já era muito, mas também pela adrenalina envolvida. O poder é simplesmente uma delícia. Era um jogo incrível e extasiante. As estratégias, as disputas, a concorrência. Ele virou um especialista. Um viciado. O resto depois foi fácil. Outras coisas foram ficando pelo caminho. Foram ficando. Outros sonhos, outros objetivos. E, o mais engraçado, essas coisas nunca lhe fizeram falta. Até hoje. Ainda mais agora, olhando sua vida por esse novo ângulo.



Ele tenta se levantar, não sem alguma dificuldade. O corpo está frio, os músculos parecem travados, enrijecidos, como se tivessem sido colados a uma estrutura invisível que impede seus movimentos. Ele volta a procurar pela mulher. Ela está a alguns metros a sua frente, dando atenção para uma moita absolutamente desconhecida para ele.

– Oi! Olá! Aqui! – ele acena com a mão. – Será que você pode me ajudar?

Ela se vira para ele, incomodada. Ele teve a sensação de que aquela moita era mais importante para ela do que ajudar ao homem que lhe paga seu salário. Voltou a se apoiar no cotovelo. Afinal, por que ele deveria ser mais importante do que a moita? Ela sabe mais da moita do que da vida daquele homem estranho, estirado na grama. No mais, ele invadiu o seu território. Estava atrapalhando sua rotina. Estava poluindo seu gramado. Pensamento esquisito esse, mas fez um sentido danado.

Ela se aproxima e lhe estende a mão. O rosto está sério. Ele fica imaginando se aquela moça já sorriu alguma vez em sua vida. Com algum esforço consegue se levantar. O dia está realmente lindo. Chega a ser um desperdício. Ele percebe que está faminto!

– Vem comigo. Vamos tomar café? – o convite saiu antes que ele pudesse raciocinar. Não é do seu feitio convidar a mulher que cuida do jardim para tomar café. Bem, também não era do seu feitio acordar no meio do gramado, atrapalhando a rotina das flores. Pelo menos não lhe ocorre nenhuma lembrança de já ter feito isso antes.

– Não, obrigada. Tenho coisas para fazer. Além do mais, já tomei café da manhã.

– Ora vamos. Não vai fazer mal algum parar o trabalho por alguns minutos.

– Eu agradeço, mas eu realmente tenho mais o que fazer – aquela resposta lhe pareceu verdadeiramente mal humorada. O que será que ele fez? Ora, mas que pergunta mais besta essa. Tudo!

– Por favor, eu imploro. O dia está lindo e eu gostaria muito da sua companhia para o café – ela o encarou com ar de desconfiança. Ele ficou desconcertado por alguns segundos. Será essa a reação que costumo produzir nas pessoas? – ele pensou.

Ela virou as costas para ele e foi guardar algumas ferramentas que ainda tinha em mãos. Voltou e o acompanhou até a casa sem dizer uma palavra. Ele abriu a porta de vidro. Quando ela passou, ele agradeceu:

– Obrigado – ele disse. Ela sorriu. E o dia pareceu ficar mais bonito ainda.

Ele chamou por Margarida, a cozinheira. A mulher entrou na copa em polvorosa, aos gritos de “ele está aqui”! Houve certo tumulto. Outros empregados apareceram. Alguém imaginou que ele havia sido sequestrado. Estavam prestes a chamar a polícia. A farra deve ter sido terrivelmente anormal. A moça do jardim permanecia alheia a tudo aquilo. Ele olhou para ela um tanto sem jeito. Ela parecia ser a única pessoa da casa a não se preocupar com o seu estado de saúde. Talvez exatamente por isso ele gostava tanto dela.

– Eu agradeço a preocupação de todos vocês. Muito obrigado, mas eu estou bem. Estava no jardim, acho que passei a noite lá. Não se preocupem, voltem para seus afazeres – todos o cercaram e várias mãos lhe apalparam o corpo. No meio da confusão alguém lhe estendeu um robe de seda. Que delícia. Ele não tinha percebido, mas estava com frio.

– Obrigado, obrigado – respondeu quase que automaticamente. Ele ficou curioso. Quis saber de onde vinha aquela mão salvadora. Jairo, um misto de valete e mordomo. Vivia no seu pé, sempre atento. Ao lado de Jairo estava Margarida, sua eterna fada madrinha.

– Margarida, por favor, você pode preparar um café? Estou faminto.

– Quer que faça algo especial, patrão?

– Tudo o que tenho direito. Ovos, pães, bolos. Tudo que você tiver.

Não seria complicado. Todos os dias joga-se fora uma tonelada de comida. Margarida era daquelas mulheres que não prestava muita atenção ao que acontecia à sua volta. Ela pesquisou cuidadosamente o que cada um gostava, principalmente as crianças. Desde então, os cafés da manhã pareciam serviços de contos de fadas. Mesmo quando a casa ficou vazia.

Não demorou muito e lá estava a mesa posta. Cinematográfica, como sempre. Ele não se lembra de quando foi a última vez que tomou café da manhã ali.

– Alguém por acaso faz ideia do que aconteceu aqui ontem?

A pergunta deve ter parecido estranha, ainda mais vindo de alguém como ele. Pode não parecer, mas Rodolfo costuma ser controlador e responsável. Não necessariamente nessa ordem. Mas era evidente que algo saiu do controle. Houve um silêncio gelado, como se todos não estivessem mais ali, apenas estátuas de cera. Do fundo da cozinha, Margarida quebrou o silêncio.

– Seus amigos foram muito cruéis com o senhor, patrão. Pergunte para o Jairo, ele estava servindo as bebidas ontem à noite.

– Devo dizer que ela está certa, patrão.

– Você concorda, Jairo? Como meus amigos podem ter sido assim, tão cruéis comigo?

Margarida não resistiu e veio até o balcão que separava a cozinha da copa.

– O senhor estava triste. Queria conversar, mas ninguém lhe dava ouvidos. Sempre que o senhor se aproximava de um deles, eles empurravam um copo de bebida. Eles não queriam ouvir o senhor falar.

– Sério?

– Bem, senhor. A última vez que eu o vi, o senhor estava conversando com a coluna da varanda. Depois o senhor desapareceu.

– Não é função dos meus amigos ficar ouvindo meus desabafos...

– Mas se os seus amigos não fizerem isso, quem vai fazer? – emendou Margarida.

– Não sei. Vocês?

Eles se olharam um tanto desconcertados. Alzira, a copeira, que acompanhava tudo em silêncio encarregou-se de colocar as coisas em seus devidos lugares.

– Nós somos seus empregados. O senhor nos paga para sermos atenciosos e discretos. Seus amigos, senhor, têm o dever de ampará-lo nessas horas.

– Pois é, Alzira. Acho que você tem razão. Mas a atenção e a discrição de vocês têm sido meu único alento ultimamente... Mas, enfim, como terminou a bagunça?

– Bem, senhor, depois daquela conversa com a coluna, seus amigos ficaram por mais um tempo, eu continuei servindo as bebidas e os canapés. Quando todos foram embora eu procurei pelo senhor e não o encontrei em lugar algum. Pensamos que o senhor tivesse sido sequestrado.

– Ou pior, que tivesse saído naquele estado deplorável. Imagina se o senhor pega um carro e sai por essas estradas, bêbado daquele jeito! – emendou Margarida.

– Eu estava triste, então. Você tem certeza, Margarida?

– Claro, patrão. O senhor estava com saudades...

Ele interrompeu a conversa. Não queria entrar em detalhes. Não mais.

– Você já experimentou os bolos da Margarida? São simplesmente fantásticos.

– Sim, eu já comi algumas vezes. Ela sempre leva um pedaço para mim, no jardim.

– É. Ela é assim mesmo.

– Imagina, temos tanta comida. É um prazer oferecer meus bolos deliciosos.

– Ela também é bastante modesta, como você pode perceber.

Aos poucos os empregados retomaram suas rotinas. Alzira e Jairo foram para a sala. Margarida enfiou-se na cozinha. Ficaram apenas os dois e aquela mesa enorme.

– Eu nem lembro mais quando foi a última vez que tomei um café da manhã tão delicioso e tão tranquilo. Aliás, você sabe que dia é hoje?

– Hoje é quinta-feira.

– Ora vejam, quinta-feira. Eu devo ter milhões de coisas para fazer – ele bateu a mão no peito, procurando por um bolso na camisa. Mas estava sem camisa. Olhou em volta numa tosca tentativa de encontrar seu celular.

– Perdeu alguma coisa?

– Eu lembrei do meu celular... Não faço ideia de onde o deixei. Mas realmente isso não importa. Melhor assim. Pode ter caído no jardim.

– Se estiver no jardim deve estar imprestável. Eu estava molhando as plantas, está lembrado?

– Verdade. Não tem importância. Você sempre cuidou de jardins?

– Desde que eu me entendo por gente.

– Sério? Mas você... Desculpe, eu ia falar uma bobagem...

Ela olhou para ele com algum espanto. Afinal, aquilo não fazia sentido algum. Ele tentou consertar. O problema é que ele já não sabia direito o que queria dizer. Ela sorriu outra vez e completou, antes que ele organizasse seu raciocínio.

– Se você quer saber se eu sempre trabalhei com isso, a resposta é não. Eu trabalhei na empresa do meu pai por muitos anos. Até ele perder o negócio. Eu me formei em Botânica e há três anos abri minha empresa de paisagismo. Tenho meu próprio viveiro de plantas. Forneço para bancos, prefeituras, empresas. E também cuido de alguns jardins. Principalmente aqueles que eu criei e que me permitem desenvolver minhas mudas. Como é o seu caso.

– Ah tá. Lamento saber que seu pai perdeu o negócio. Deve ter sido complicado. O mercado às vezes é muito cruel.

– Sim, muito cruel. Você foi o responsável.

– Pelo que?

– Por meu pai perder o negócio. Você avançou sobre a empresa da minha família feito um gavião. Pressionou fornecedores, cercou nossos credores. Fez o possível e o impossível até conseguir assumir o controle. Aí você vendeu a empresa para nosso maior concorrente.

– Puxa! Eu sinto muito.

– Agora sou eu que pergunto: pelo quê? Por ter feito o seu trabalho? Você deve ter ganho muito dinheiro nessa operação, não é mesmo?

– Bem, eu não sei o que dizer.

E de fato, ele não sabia. Aquela era a primeira vez que se sentava à mesa com uma das vítimas dos seus negócios. E não era uma situação muito confortável. Nunca havia estado assim, tão perto. Nunca olhou diretamente nos olhos daquelas pessoas. Nem se preocupou em saber o que elas fariam de suas vidas. E ela estava ali, bem na sua frente. E, apesar daquela situação constrangedora, ela ainda esboçava um sorriso. Aquele devia ser o seu momento de glória. Poder jogar na cara do carrasco do seu pai o que ele fez. Mas não era isso. Sua expressão permanecia tranquila. Era realmente impressionante. Ela olhou direto em seus olhos e abriu o sorriso mais lindo que ele já viu.

– Não se preocupe. Eu não tenho mágoas do que você fez. Muito pelo contrário. No final, acho que você salvou as nossas vidas. No começo foi difícil. Meu pai não sabia bem o que fazer, ficou bastante desorientado. A empresa era a sua vida, mas também sempre foi um fardo. Ele lutou muito por ela e eu acho que foi um tanto além das suas forças. Quando tudo estava consumado e parecia ser o fim, ele encontrou umas velhas ações que havia comprado na primeira operação de ampliação da empresa. Graças à sua interferência, aquelas ações valiam uma fortuna. Ele as vendeu e conseguiu recuperar a propriedade mais importante para ele. Um pequeno sítio na serra. Aquele sítio era o seu velho sonho. Ele reconstruiu sua vida lá. Ele cria algumas vacas e produz um leite de excelente qualidade que fornece apenas para alguns clientes muito seletos.

– Sério? Ele ainda tinha ações da empresa guardadas?

– Não. Eram ações da nossa concorrente.

Rodolfo não conteve o riso.

– E hoje ele produz leite...

– Sim. Olhe ali na bancada, perto da Margarida – disse, apontando para o centro da cozinha, atrás do balcão. – Vê a garrafa de leite? Então, você é um dos nossos seletos clientes. Ele também fabrica queijos e uma marca de doce de leite.

– Você está brincando. Eu adoro esse leite. E gosto ainda mais do doce de leite. Tem um quê da minha infância...

Ela riu. Ele ficou com sua expressão congelada, como uma criança pega no flagra.

– Meu pai fala a mesma coisa. Ele conseguiu chegar no ponto do doce de leite que a minha avó, a mãe dele, fazia. Tem gosto de infância.

– É tão bom quando tem gosto de infância... – ele foi pego outra vez no flagra. Só que agora ela apenas sorriu. Aquele sorriso terno que nossas mães costumavam abrir quando fazíamos algo de que elas gostavam...

– Será que eu posso te ver de novo? – ele arriscou. Por algum motivo ele começou a acreditar que devia ir além daquele café da manhã.

– Você pode me ver todos os dias. Eu trabalho aqui. Bem, na verdade não serão todos os dias. Eu trabalho aqui terças e quintas-feiras...

– Não, quero dizer... Eu quero me encontrar com você desse jeito... Como estamos aqui.

– Tomando café da manhã? Não sei. Você pretende acordar no meu jardim outras vezes?

– Não. Eu espero que não...

– Então nós não vamos nos encontrar assim, desse jeito – ela riu um riso solto.

– Puxa, está ficando difícil. Eu quero me encontrar com você longe daqui... De um jeito diferente... Quer saber, sim eu quero acordar de novo no seu jardim, aliás, é o meu jardim, diga-se de passagem, é desse jeito que eu quero te encontrar.

Ela olhou para ele outra vez daquele jeito que ele não conseguia explicar. Um olhar que emana um calor gostoso, que o fez descobrir que ele existe apenas quando ela olha daquele jeito. E que longe dela só existem trevas e as colunas da varanda para conversar.

– Você consegue repetir tudo o que acabou de dizer?

– Por quê?

– Só pra saber se você entendeu o que disse. Porque eu não entendi nadica.

– Eu disse que quero ver você de novo, sempre que possível.

– Eu não sei. Isso vai depender da sua disposição em acordar no jardim sempre que for necessário. E, corrigindo, é o meu jardim. Ele pode até estar na sua casa. Mas é o meu jardim. E é nele que você vai ter que acordar se quiser me ver de novo. Fui clara?

Muito. Acho que ninguém teria conseguido ser mais claro do que ela. Nunca.

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